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“Deus dá uma segunda chance”: sofrer e refazer mundos em testemunhos religiosos

“God gives a second chance”: suffering and remaking worlds in religious testimonies

Resumo

O testemunho religioso é um gênero de narração de histórias de vida estruturado numa linguagem dos sentimentos. Ele explora a “vida interior” do converso através da elaboração e exposição pública de seus suplícios. Nesse sentido, a partir da análise dos testemunhos de artistas mulheres convertidas ao pentecostalismo, o artigo tem como propósito acompanhar o processo de constituição dos sofreres que perpassam suas narrativas. Nesses testemunhos, o sofrimento é uma categoria nativa acionada para qualificar estados emocionais negativos e que se articula a expressões como “dor”, “vazio” e “angústia”. Proponho neste trabalho uma abordagem teórica que procura revelar as temporalidades existentes na construção dessas sensibilidades evangélicas. Busca-se explicitar as estratégias que tais artistas encontram para lidar com as dores do cotidiano e tentarem uma recuperação existencial de si depois de passarem por experiências subjetivas tortuosas, o que chamarei aqui com base na literatura antropológica de “refazendo um mundo”.

Palavras-chave:
testemunhos; sofrimento social; conversão religiosa; gênero

Abstract

Religious testimony is a genre of life storytelling structured in a language of feelings. It explores the “inner life” of the convert through the public exposure of his torments. From the analysis of the testimonies of women artists converted to pentecostalism, the article is intended to accompany the process of constitution of sufferers who pass through their narratives. Suffering is a native category triggered to qualify negative emotional states and is articulated with expressions such as “pain”, “emptiness” and “anguish”. I propose in this work a theoretical approach that seeks to reveal the temporalities that exist in the construction of these evangelical sensibilities. It seeks to explain the strategies that such artists find to deal with the pains of daily life and to try an existential recovery of self after passing through tortuous subjective experiences, what I will call based on the anthropological literature of “remaking a world”.

Keywords:
testimonies; social suffering; religious conversion; gender

Introdução

Vídeo 1, fevereiro de 2015, Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus, São Paulo.1 1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tRKURAvyI5w. Diante de uma plateia lotada e difícil de contabilizar - mas que chega a milhares de fiéis - a ex-modelo Andressa Urach sobe ao púlpito. Com o microfone em mãos, e tendo ao lado sua mãe e bispo, está prestes a dar o primeiro testemunho após conversão ao pentecostalismo. Há poucos meses, as notícias na imprensa sensacionalista mostravam Urach em coma na cama de um hospital por conta de uma infecção generalizada provocada pelo uso de hidrogel em seu corpo, substância utilizada por ela para dar contornos às nádegas e coxas no intuito de performatizar a “superfêmea” (Bispo, 2015BISPO, R. Vivendo do rebolado: feminilidades, corpos e erotismos no show business televisivo. Mana, v. 21, n. 2, p. 237-266, 2015., 2016aBISPO, R. Rainhas do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2016a.) que a indústria cultural tão bem sabe explorar. “Andressa, conta aí a tua trajetória para a tua ruína, para tua desgraça”, estimula o bispo. A jovem não hesita, mesmo demonstrando apreensão. Volta-se para o público, agradecendo a oportunidade: “Que Deus me dê o controle da emoção, porque eu tive uma segunda chance.” Em poucos segundos, sua voz engasga. Um choro se anuncia, mas nada que a impeça de continuar o relato. A voz segue falhando: “Hoje eu estou aqui na casa de Deus. Dizimista fiel. Depois de ter sofrido tanto, depois de dois meses na cama, depois de quase morrer. Eu só dei valor à vida depois de passar pela sombra da morte e criar valores.” Por meio de gestos incisivos, ela faz uso do corpo para narrar, retirando as palavras de sua “casca racionalista” (Fonseca, 2000FONSECA, C. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2000., p. 120), a linguagem do corpo se impondo a qualquer voz mais “intelectualizada” e analítica. Como fazem os bons narradores, Urach transforma o corriqueiro em extraordinário, arrancando do anonimato uma história comum (Benjamin, 1994BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221.). Aos poucos, constrói um ambiente dramático em que uma série de acontecimentos é substituída por outra, numa frenética descrição repleta de detalhes sonoros, visuais e táteis. “O pus da perna escorria e eu sentia nojo, tive que andar de cadeira de rodas. Eu sofri! E eu comecei a sentir aquele vazio no peito de novo, aquela angústia.” O relato de Urach seguirá por cerca de 20 minutos e pelos detalhes contados se assemelhará a partir daí ao conteúdo de inúmeros outros vídeos seus que posteriormente se espalharão pela internet.

Vídeo 2, maio de 2014, evento Chá Rosa das Mulheres da Igreja Ceifa, Foz do Iguaçu (PR).2 2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gwi88C5jrR0. Trata-se de um evento anual evangélico que visa “derramar sobre a vida das mulheres a essência de Deus”.3 3 A página na internet que apresenta o evento é: http://charosa.blogspot.com.br/. Entre várias atividades realizadas, naquele ano a “palestrante” - como aparece no vídeo - era a dançarina Valéria Valenssa, por mais de 15 anos conhecida como a “mulata Globeleza”. Ela está em um palco decorado com rosas, com fundo de mesma tonalidade. Diante dela, uma plateia composta apenas por mulheres, todas também repletas de elementos rosados em suas vestimentas. “Hoje eu estou aqui, participando dessa festa para compartilhar um pouquinho da minha história, um pouquinho do meu sonho. Quem é que não sonha?” Sempre sorridente, Valenssa testemunha num tom de voz suave e vagaroso, andando para lá e para cá no palco. Sua narrativa adquire um tom de fábula, misturando um mínimo de verossimilhança com elementos de fantasia. “Eu nasci numa família muito simples e eu não tinha muita inspiração para sonhar, mas eu tinha algo diferente dentro de mim. Eu sonhava em ter um príncipe loiro dos olhos azuis. Eu imaginava que ele viria até a cavalo.” Valenssa aumenta o suspense ao alongar sua história, fazendo uso de expedientes que adiam o desenlace da trama que a levou a se converter, como contar em detalhes acidentes sofridos em meios de transporte, até a sua demissão da Rede Globo. “Ali eu estava no fundo do poço, ali eu chorava toda noite. Eu não vivia mais! Eu fiquei seis meses sem sair de casa, sem falar com ninguém.” A “Globeleza” não chora, mantendo-se plácida, inclusive fazendo uso do humor a fim de frear a mão pesada da história dramática que está a contar. “Quem sabe no próximo evento eu venho de rosa, né, gente?! Hoje eu vim de verde e eu deixo aqui para vocês o verde esperança, porque a nossa esperança nunca pode morrer.”

Outros testemunhos de artistas constantemente avançam pelo espaço público verbalizando a “libertação subjetiva” (Duarte, 2006DUARTE, L. F. D. et al. Família, reprodução e ethos religioso subjetivismo e naturalismo como valores estruturantes. In: DUARTE, L. F. D. et al. (org.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. p. 15-50.) por elas experimentada. Seja na igreja, em eventos religiosos ou dentro de suas casas - em suas salas, cozinhas ou sentadas em suas camas (Bispo, 2018BISPO, R. Na corrente midiática da fé: comunicação de massa e dinâmicas contemporâneas do testemunho evangélico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 249-277, 2018.) -, muitas famosas fazem uso de programas de televisão, rádios, livros e produtos digitais como DVDs, canais de internet e redes sociais para formular a “justificação religiosa” que embasa suas “novas” vidas, nos termos propostos por Duarte et al. (2006DUARTE, L. F. D. Ethos privado e modernidade: o desafio das religiões entre indivíduo, família e congregação. In: DUARTE, L. F. D. et al. (org.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. p. 51-87., p. 25), visto que os testemunhos tratam de uma “racionalização” a posteriori de uma experiência pessoal. Na atualidade religiosa brasileira, o testemunho público enquanto “revelação do pecado normatizado”, afirmam Natividade e Gomes (2006NATIVIDADE, M.; GOMES, E. de C. Para além da família e da religião: segredo e exercício da sexualidade. Religião e Sociedade, v. 26, n. 2, p. 41-58, 2006., p. 43), é característico do campo evangélico pentecostal e tornou-se uma forma discursiva que explicita um apelo à conversão de outras pessoas por meio de um “ensinamento moral” garantido por uma trajetória considerada “exemplar”.

Entretanto, se atentarmos para o que é dito nos testemunhos dessas artistas, em sua grande maioria notamos elementos considerados privados em nítida exposição: um “circuito midiático de fé” (Bispo, 2018BISPO, R. Na corrente midiática da fé: comunicação de massa e dinâmicas contemporâneas do testemunho evangélico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 249-277, 2018.) certifica publicamente uma experiência íntima, gerando uma relacionalidade entre quem narra e quem ouve. O testemunho é um gênero cuja convenção máxima parece ser desenvolver subjetividades através da exposição de grande intensidade de emoções. É, portanto, uma narrativa essencialmente sentimental, explorando a vida interior daquele que fala através da elaboração de sofrimentos. Abu-Lughod (2005)ABU-LUGHOD, L. Dramas of nationhood: the politics of television in Egypt. Chicago: The University of Chicago Press, 2005., ao destacar as marcas do melodrama na cultura ocidental moderna, demonstra que mesmo seguindo uma fórmula convencional típica, a construção de dramas do sofrer torna-se sempre personalizada por conta da linguagem dos sentimentos ali utilizada. Portanto, por mais público e convencional que seja o ato de testemunhar religioso, estamos tratando por meio dele de emoções que se fazem em narrativas tanto por suas propriedades singulares quanto por seus papéis preestabelecidos de discurso.

Diante disso, o presente artigo4 4 Este artigo é resultado de uma pesquisa por mim coordenada e intitulada “Testemunhos e transformações: narrativas, emoções e moralidades femininas na conversão religiosa de artistas populares”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Agradeço imensamente ao empenho e carinho da equipe de iniciação científica envolvida no segundo ano do projeto (2018) e que muito auxiliou para a redação final deste texto: Bruna Furtado (VIC/UFJF), Caroline Mendonça, Eric Fraga (IC/Fapemig), Helena Carvalho (IC/Fapemig), Luiza Vieira Godinho (VIC/UFJF), Nathália Prados (BIC/UFJF), Thaís Melo (BIC/UFJF), Vanessa Fávero (VIC/UFJF), Victoria Junqueira (BIC/UFJF). tem como propósito acompanhar o processo de constituição dos sofrimentos que perpassam experiências femininas a partir dos testemunhos de conversão de artistas evangélicas. Por meio da análise comparativa das histórias de vida de três ex-modelos/dançarinas famosas,5 5 Este artigo trata exclusivamente da conversão de ex-modelos e dançarinas, não só pelo meu interesse nessas carreiras artísticas em específico (Bispo, 2015, 2016a, 2016b), mas pelas questões morais que elas suscitam por conta de suas proximidades com o mercado erótico. Entretanto, a pesquisa da qual esse material empírico faz parte tem se dedicado a outros segmentos das artes, como cantoras, atrizes, apresentadoras, etc. observaremos que o sofrimento é em tais narrativas uma categoria nativa e central para a formulação de histórias pessoais que versam sobre as “políticas e economias da vida” (Víctora, 2011VÍCTORA, C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da antropologia. Reciis, v. 5, n. 4, p. 3-13, 2011., p. 5). Nesses testemunhos, o sofrer é acionado para qualificar estados emocionais negativos do passado (e mesmo do presente) e que se confundem com expressões como “dor”, “vazio” e “angústia”. Como veremos adiante, desenvolvo esse objetivo ampliando analiticamente as perspectivas narrativo-performáticas ou de diagnóstico de sociedade com que os sofreres nos testemunhos vêm sendo pensados majoritariamente na literatura especializada. Além disso, busca-se perceber também como questões relativas ao gênero e à sexualidade atrelam-se a essas falas, dando especial atenção às sensibilidades femininas e seus dilemas frente à adesão evangélica e à vivência em algum momento de suas trajetórias de estilos de vida que contrastam nitidamente com as moralidades religiosas hegemônicas.

Sendo assim, uma reflexão focada nos sofrimentos femininos e na “entrada” de artistas para igrejas poderia nos guiar para uma pergunta tendenciosa: “O que aconteceu?”, algo que também intrigou Das (2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011., p. 34) em suas pesquisas. Entretanto, a ideia não é responder a perguntas como esta citada - fazendo uma reconstrução linear da vida de mulheres pentecostais -, mas constatar como a conversão incide sobre as relações cotidianas delas, já que os sofrimentos são dimensões inescapáveis da vida, verificando assim o quanto a questão da aflição pessoal liga-se a processos que estão além do controle individual (Víctora, 2011VÍCTORA, C. Sofrimento social e a corporificação do mundo: contribuições a partir da antropologia. Reciis, v. 5, n. 4, p. 3-13, 2011., p. 6). Inspiro-me aqui nas ideias desenvolvidas por Das e Kleinman (2001)DAS, V.; KLEINMAN, A. Introduction. In: DAS, V. et al. Remaking a world: violence, social suffering and recovery. Berkeley: University of California Press, 2001. p. 1-30., Kleinman (2006) e Das (2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., 2015DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015.), particularmente quando eles pensam acerca dos processos que fazem inúmeros indivíduos em torno de uma recuperação existencial de si e de busca por habitar novamente seus mundos depois de passarem por experiências subjetivas tortuosas de sofrimento, o que costumam chamar de “refazendo um mundo” (“remaking a world”, no original). Diante de uma grave afronta às suas existências, muitas pessoas passam a agir a partir de então com o intuito de garantir o cotidiano, a banalidade da vida, resumindo sua tarefa no mundo a meramente viver, não no sentido de apenas sobreviver, mas no de aprender a se engajar na vida novamente (Das; Kleinman, 2001DAS, V.; KLEINMAN, A. Introduction. In: DAS, V. et al. Remaking a world: violence, social suffering and recovery. Berkeley: University of California Press, 2001. p. 1-30., p. 4).

Talvez, a pergunta que melhor movimente a reflexão que procuro travar seja a proposta pela antropologia do sofrimento social formulada por Kleinman (2006)KLEINMAN, A. What really matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press, 2006.: “O que realmente importa?” (“what really matters?”, no original), ao invés de “o que aconteceu?”. Tal inversão de olhar que aqui estimulo nos favorece observar as pessoas em ação, tentando (re)construir uma vida digna e louvável para si, vivendo ativamente seus mundos dentro das normas e governos que as constituem, isto é, agindo não na tentativa de subverter ou transgredir situações de dominação na maioria dos casos, mas estabelecendo uma certa “arte de viver” por entre as normas, algo que Mahmood (2006)MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006. propõe ser também uma forma de agência. Narrarei histórias de artistas que tentam viver vidas morais mesmo diante de certos perigos e incertezas. Olharemos a conversão a partir de uma lógica mais banal, seguindo as estratégias que os sujeitos encontram para lidar com as dores do cotidiano.

Sobre testemunhos religiosos e sofrimentos

Como em qualquer proposta evangelizadora, no pentecostalismo busca-se publicizar ao máximo através da mídia as narrativas testemunhais de pessoas que são em algum grau influentes e conhecidas na sociedade. Isso pode ser interpretado a partir dos pontos de vista de que é dever do sujeito em conversão “levar a palavra” a outras pessoas (Teixeira, 2011TEXEIRA, C. A construção social do “ex-bandido”: um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.); de que um veículo de comunicação é um “canal santificado” de transmissão de projetos e missões religiosas (Birman; Machado, 2012BIRMAN, P.; MACHADO, C. A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 80, p. 55-70, 2012.); de que artistas tornam-se “indivíduos exemplares” no contexto pedagógico de certas congregações (Dullo, 2011DULLO, E. Uma pedagogia da exemplaridade: a dádiva cristã como gratuidade. Religião e Sociedade, v. 31, n. 2, p. 105-129, 2011.; Natividade; Gomes, 2006NATIVIDADE, M.; GOMES, E. de C. Para além da família e da religião: segredo e exercício da sexualidade. Religião e Sociedade, v. 26, n. 2, p. 41-58, 2006.); ou, como demonstrei em outro artigo (Bispo, 2018BISPO, R. Na corrente midiática da fé: comunicação de massa e dinâmicas contemporâneas do testemunho evangélico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 249-277, 2018.), de que o testemunho é um ato de fala público de longa tradição na cultura ocidental, ilustrador da concepção moderna de pessoa e um dos gêneros narrativos mais emblemáticos existentes entre os atos de fala cristãos, tal como a prece, a pregação, o sermão e a confissão, por exemplo (Duarte; Dullo, 2016DUARTE, L. F. D.; DULLO, E. Introdução ao dossiê ‘Testemunho’. Religião e Sociedade, v. 36, n. 2, p. 12-18, 2016.; Dullo, 2016DULLO, E. Testemunho: cristão e secular. Religião e Sociedade, v. 36, n. 2, p. 85-106, 2016.; Martins, 2016MARTINS, I. Moralidades e atos de fala em serviços de apoio emocional: modalidades laicas da confissão e do testemunho?. Religião e Sociedade, v. 36, n. 2, p. 19-43, 2016.).

No entanto, seguindo certas perspectivas que considerarei aqui como diagnósticos de sociedade, tais testemunhos religiosos proferidos em contextos midiáticos e expondo sofrimentos de artistas remonta, por exemplo, à clássica interpretação proposta por Sennett (1988)SENNETT, R. O declínio do homem público. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. de que a sociedade contemporânea é resultado de um histórico esvaziamento da esfera pública baseado na hipervalorização da intimidade e na perpetuação da personalidade como a mais distinta maneira de se apresentar no domínio público. É por essa trilha, por exemplo, que Gabler (1999)GABLER, N. Vida, o filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. segue ao afirmar que a vida no mundo de hoje se transformou em um filme, isto é, o cotidiano mais banal dos sujeitos se tornou ele próprio um veículo de comunicação. Expor os sofrimentos a uma coletividade através da mídia seria o reflexo dessa constatação de que a vida privada das pessoas teria se tornado mais fascinante do que aquelas criadas pela ficção, sendo o testemunhante também um intérprete que expõe seus sofreres a um ávido público interessado em suas intimidades.

Para Sarlo (2007SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras: Editora UFMG, 2007., p. 11), nos anos 1960 e 1970 - ápice do estruturalismo - havia a impressão generalizada de “morte do sujeito”: momento de crise da subjetividade em que o “eu” e o ato de testemunhar pareciam apagados, com pouca expressividade e legitimidade. Ao contrário disso, a autora identifica em seu diagnóstico de sociedade que o ponto de vista individual adquiriu um lugar central em todas as nossas dinâmicas atuais, fenômeno que ela chama de “guinada subjetiva” e de “sujeito ressuscitado”. Se o testemunho se tornou um ícone da Verdade, indaga a autora, que tipos de passado são construídos quando ele emerge como única fonte? A tendência aos detalhes, ao acúmulo de precisões, à ênfase na experiência e na linguagem dos sofrimentos acaba dando uma forma muito específica a esse passado, tornando as emotividades a linha mestra de como se expressar historicamente hoje.

A eficácia do testemunho de artistas e seu sucesso na mídia liga-se também à capacidade da oradora de “contar sua história”, à habilidade de saber verter sofrimentos em narrativas. Como vimos, Urach chora diante da plateia e Valenssa a faz rir a fim de entretê-la (e, portanto, convencê-la). Segundo Foucault (2014FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2014., p. 37), o testemunho, enquanto uma “tecnologia do eu”, pode ser compreendido também como um “ritual da palavra”, um típico procedimento de sujeição e controle de discurso. Isso porque existem regras para sua enunciação. Logo, gestos, comportamentos, circunstâncias, contextos, enfim, um conjunto de elementos performáticos deve acompanhar as estratégias discursivas do testemunho, tornando-se ele uma narrativa oficial, normativa e estilizada. Mafra (2000MAFRA, C. Relatos compartilhados: experiências de conversão ao pentecostalismo entre brasileiros e portugueses. Mana, v. 6, n. 1, p. 57-86, 2000., p. 56) diz ser o pentecostalismo visto com frequência como a “religião da palavra”, uma vez que a fala, a retórica e a expressão pela linguagem são instrumentos centrais de sua cosmologia.

O testemunho é, portanto, um gênero de narração de histórias de vida com características próprias, algo já observado por inúmeros autores no âmbito da socioantropologia da religião (Côrtes, 2007CÔRTES, M. O bandido que virou pregador: a conversão de criminosos ao pentecostalismo e suas carreiras de pregadores. São Paulo: Hucitec, 2007., 2014CÔRTES, M. O mercado pentecostal de pregações e testemunhos: formas de gestão do sofrimento. Religião e Sociedade, v. 34, n. 2, p. 184-209, 2014.; Dullo, 2011DULLO, E. Uma pedagogia da exemplaridade: a dádiva cristã como gratuidade. Religião e Sociedade, v. 31, n. 2, p. 105-129, 2011., 2016DULLO, E. Testemunho: cristão e secular. Religião e Sociedade, v. 36, n. 2, p. 85-106, 2016.; Machado, 2014MACHADO, C. Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 153-180, 2014.; Mafra, 2000MAFRA, C. Relatos compartilhados: experiências de conversão ao pentecostalismo entre brasileiros e portugueses. Mana, v. 6, n. 1, p. 57-86, 2000., 2002MAFRA, C. Na posse da palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002.; Natividade; Gomes, 2006NATIVIDADE, M.; GOMES, E. de C. Para além da família e da religião: segredo e exercício da sexualidade. Religião e Sociedade, v. 26, n. 2, p. 41-58, 2006.; Teixeira, 2011TEXEIRA, C. A construção social do “ex-bandido”: um estudo sobre sujeição criminal e pentecostalismo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011., 2016TEXEIRA, C. O testemunho e a produção de valor moral: observações etnográficas sobre um centro de recuperação evangélico. Religião e Sociedade, v. 36, n. 2, p. 107-134, 2016.). Em um desconstrucionismo à la Bourdieu (1996)BOURDIEU, P. Apêndice 1: a ilusão biográfica. In: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 74-82., afirma-se com frequência que os relatos produzem uma “ilusão biográfica”, construindo a vida como uma trajetória sequencial e linear de etapas. Fala-se assim, pela via da temporalidade, de um “antes” da conversão como uma “vida de pecados” e um “depois” marcado por mudanças de conduta e o alcance das graças pela aproximação com o espaço congregacional e a experiência de um novo estilo de vida. A percepção da conversão não como uma ruptura mas, sim, tal como uma “passagem”, lembra Birman (1996)BIRMAN, P. Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil: passagens. Religião e Sociedade, v. 17, n. 1/2, p. 90-109, 1996., nos leva a uma compreensão mais rica do contexto social e do processo lento e gradual que marca o dia a dia dos novos fiéis. A transformação individual não se faz de uma só vez, afirma Mafra (2002MAFRA, C. Na posse da palavra: religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002., p. 60), mas exige um lento trabalho de reconstrução de referentes do passado e do presente da pessoa.

Logo, essa perspectiva narrativo-performática de como os testemunhos têm sido analisados na literatura socioantropológica oferece um olhar específico para os sofrimentos ali narrados, compreendidos pela chave da retórica, da busca pela sensibilização do outro, da captação da atenção dos ouvintes e da afirmação com ele de um pacto discursivo. Côrtes (2014)CÔRTES, M. O mercado pentecostal de pregações e testemunhos: formas de gestão do sofrimento. Religião e Sociedade, v. 34, n. 2, p. 184-209, 2014., no contexto que nomeia de “capitalismo religioso”, diz que o passado de dor é agenciado e vendido em um mercado evangélico de pregadores em concorrência. Assim, quanto mais estranha e grotesca a história de vida daqueles que testemunham, maiores as possibilidades de sedução e venda. A indústria pentecostal faz do sofrimento algo que não deve ser expurgado, mas agenciado em um “movimento redundante de repetição infinita” (Côrtes, 2014CÔRTES, M. O mercado pentecostal de pregações e testemunhos: formas de gestão do sofrimento. Religião e Sociedade, v. 34, n. 2, p. 184-209, 2014., p. 202). Para a autora, há uma efemeridade no testemunho, já que este perderia sua potência quando da ausência de novos fatos exorbitantes e anormais, quando não se consegue mais chocar os ouvintes com seus sofrimentos. Uma marca dos testemunhos de “ex-bandidos”, observa Machado (2014MACHADO, C. Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 153-180, 2014., p. 168), por exemplo, é o grau de importância e gravidade conferido aos atos violentos por eles cometidos: jovens com incursões tímidas no crime transformam suas ações do passado em grandes delitos, “quase bandidos” forjam-se em narrativas em “importantes ex-bandidos”. Diante de tais “usos sociais” do sofrer, Kleinman e Kleinman (1997KLEINMAN, A.; KLEINMAN, J. The appeal of experience; the dismay of images: cultural appropriations of suffering in our times. In: KLEINMAN, A.; DAS, V.; LOCK, M. Social suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. p. 1-23., p. 8) defendem existir na atualidade uma instrumentalização dos sentimentos para determinados fins comerciais, políticos e morais - “apropriações culturais do sofrimento” -, algo que seria facilmente verificado nos agenciamentos das dores feitos pelas congregações religiosas em suas disputas por fiéis.

Nesse sentido, a perspectiva narrativo-performática torna visível o “trabalho emocional” realizado pelas pessoas em testemunho, algo que Hochschild (2013)HOCHSCHILD, A. R. Trabalho emocional, regras de sentimento e estrutura social. In: COELHO, M. C. (org.). Estudos sobre interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p. 169-209. esclarece como sendo o gerenciamento das emoções de modo a torná-las “apropriadas” a certas situações. Essa abordagem do “trabalho emocional” nos mostra o sofrimento como culturalmente construído, permitindo analisar as regras que garantem o seu gerenciamento e expressão públicos, explicitando assim a lição máxima de Mauss (1980)MAUSS, M. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: FIGUEIRA, S. (org.). Psicanálise e ciências sociais. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1980. p. 56-63. de serem os sentimentos algo não espontâneo, mas práticas ritualizadas, além de essencialmente simbólicos e morais, linguagens proferidas pelos indivíduos em contextos específicos do cotidiano.

Mesmo sensíveis à emotividade e pontos de vista dos fiéis, as perspectivas analíticas de diagnóstico de sociedade e narrativo-performáticas colocam um tanto em suspensão a densa experiência de sofrimento apresentada nos testemunhos. Ao enfatizar os usos e estratégias do sofrer em seus ritualizados contextos de enunciação, observa-se o sofrimento como algo excessivamente instrumental, o que acaba eclipsando as especificidades das condições nas quais os conversos experimentam suas emoções. Além disso, o foco no momento performático do testemunhar apaga a relevância do tempo na construção de certas verdades de si por aquele que testemunha. Logo, não se trata aqui, é claro, de negar o “show do eu” (Sibilia, 2016SIBILIA, P. O show do Eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.) marcante da sociedade contemporânea ou os “usos sociais” do sofrimento enquanto narração e performance. Porém, busco propor um outro fio analítico para uma melhor compreensão de tais sofreres em exposição, vertente esta que procura revelar o “trabalho do tempo” (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007.) que existe na construção de certas sensibilidades evangélicas.

Isso porque há uma “profundidade temporal” (Das, 2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011., p. 28) no ato testemunhal que traz à tona outros planos de relações entre a pessoa convertida e seus sofrimentos. É preciso enfatizar que se passa na maioria das vezes um longo tempo antes de se decidir por testemunhar: tal ato marca a força pessoal tecida no tempo daquele que narra, no trabalho de conseguir gerir a vida ordinária, cuidar de si e reverter o quadro de injúrias, ou seja, do testemunhante conseguir perceber “o que realmente importa” (Kleinman, 2006KLEINMAN, A. What really matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press, 2006.) em sua vida e aos poucos dedicar-se a um “delicado trabalho de autocriação” (Das, 2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 81, tradução minha), que envolve negociações subjetivas dele com as possibilidades de mundo ao seu redor. As questões relatadas revelam assim a agência dos sujeitos e suas (nem sempre bem-sucedidas) tentativas de reconstrução moral de si mesmos, sendo possível perceber as sombras do sofrimento no passado, no presente e mesmo no futuro dessas trajetórias.

O que passei a perceber analisando as narrativas dessas artistas é que o testemunho revela as diferentes temporalidades do infortúnio dessas mulheres, sua extensão por diversos estágios da vida. É, portanto, importante ir além do sofrimento sensacional que eclode com intensidade no ato de testemunhar. O instante do testemunho é apenas um dentro de outros tempos revelados e tecidos nas histórias contadas pelos sujeitos. Essas próprias narrativas dão destaque às situações de resistência, contestação e acomodação das pessoas frente às agruras da vida. E é justamente a partir dessa busca das artistas pelo “refazer” de seus “mundos” que gostaria de interpretar os sofrimentos contidos em suas histórias.

“Não queira passar pelo que eu passei”

Andressa Urach tem 30 anos de idade e compôs quando jovem o que nomeei outrora de “baixa classe artística” (Bispo, 2016aBISPO, R. Rainhas do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2016a.). Apresentava-se como modelo em eventos, dançarina em programas populares da TV e participava esporadicamente de atividades múltiplas, nunca de maneira estável e sempre tangenciando as franjas do mercado erótico. Nas temporalidades profundas que emanam dos seus testemunhos, podemos constatar uma aproximação recente com as igrejas evangélicas, particularmente a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd). O “momento crítico” por ela acionado para apontar o florescimento da fé é justamente a infecção generalizada e os dias passados na UTI de um hospital, como mais bem descrito em outro artigo (Bispo, 2018BISPO, R. Na corrente midiática da fé: comunicação de massa e dinâmicas contemporâneas do testemunho evangélico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 249-277, 2018.). Entre tal experiência de sofrimento intenso e seus primeiros testemunhos passaram-se apenas alguns meses. Portanto, seus relatos pungentes, repletos de lágrimas, demonstram estar afetados por essa circunstância recente, que deixa marca em sua subjetividade. A grave doença de Urach promove nela intensas reconfigurações subjetivas. Logo, num primeiro momento, a experiência de sofrer é vinculada pela modelo a certas temporalidades específicas, a uma “causa” delimitada no tempo que gera “consequências” imediatas.

Entretanto, o que podemos observar nas incursões retrospectivas testemunhais de Urach é um borrar dessa associação direta entre conversão e possível experiência “traumática” gerada por uma doença. A modelo também elabora seus sofrimentos como sentimentos negativos que a acompanham por toda a vida. De acordo com Ayoub (2014AYOUB, D. Sofrimento, tempo, testemunho: expressões da violência em um conflito de terras. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 107-131, 2014., p. 111), o sofrer que perpassa os tempos é tido como um “destino moral” porque serve para outorgar à antiga modelo certas reputações e qualidades que advêm do passado e que são capazes de conferir a ela uma determinada posição enquanto evangélica. A categoria do “vazio” e da “angústia” - tomados muitas das vezes como sinônimos por minhas interlocutoras - nos serve como norte para situarmos as temporalidades do “refazer de um mundo”, revelando seus périplos em busca por melhores condições de vida, as quais só são observadas como satisfatórias, obviamente, no envolvimento direto com Deus na atualidade. No trecho que segue, do mesmo testemunho no Templo de Salomão citado anteriormente, Urach torna isso claro:

Durante seis anos, quando eu me separei aos 21 anos, eu caí no mundo. Eu já estive à beira da morte quatro vezes na minha vida. Só veio uma para imprensa, porque hoje eu sou uma pessoa pública. Durante estes seis anos eu tentei preencher um vazio que existia dentro de mim. Eu tentei preencher com a riqueza, com o dinheiro, com as melhores roupas, os melhores carros, o melhor apartamento, com os homens famosos, com as baladas. Eu estive quatro vezes à beira da morte, duas por overdose. Porque eu fui para festas eletrônicas tentando achar minha felicidade e pelo excesso de drogas eu quase morri duas vezes. Mas mesmo assim eu disse “ah… eu quero é dinheiro”, “eu quero ser feliz”, “eu quero alguém que me ame”; só que eu nunca me dei ao respeito. Então, eu me envergonho muito da Andressa Urach que morreu porque ela morreu no dia 29 de novembro do ano passado. No dia 3 de dezembro nasceu uma nova Andressa. Muitos, como o bispo falou, têm me criticado. Hoje eu sou mais criticada por ter colocado Deus na frente de tudo na minha vida do que quando eu ficava nua, pelada. Os valores se inverteram. Tudo é normal. O mundo é muito divertido, só que é vazio. Eu fiquei 20 dias deitada em um quarto em depressão com uma cobertura no Rio de Janeiro que eu, graças a Deus, pude proporcionar para a minha família, com o carro importado na garagem, com um relógio de 20 mil reais. […] Como a minha mãe e a minha avó vinham muito à igreja, eu era muito preconceituosa. Dizia: “Que Deus, Deus não existe, que Deus…” Oh, meu amigo! Não queira ver Deus, não queira passar pelo que eu passei. Eu fiquei dois meses no hospital, acho que muitas pessoas aqui sabem o que aconteceu. Deus é tão maravilhoso que me deu essa segunda chance. Só que nesses seis anos eu procurei outras religiões para preencher o meu vazio, para tentar achar a felicidade que eu não achava nas baladas, nos namorados, no dinheiro, nos carros. Eu procurei religiões, eu procurei a macumba. Eu fiz macumba para ficar rica. Eu fiz macumba para arrumar marido. Eu fiz macumba para tirar o marido de outra porque só aparecia homem casado na minha vida. Tudo errado, tudo, só dava errado. Eu achava que estava dando certo, aí dava errado. […] Eu estava no fundo do poço. Eu estava com síndrome do pânico. Nesse período eu já era viciada em cocaína. As minhas rotinas, para vocês terem ideia, eram insônia à noite, ir para a balada, beber, usar cocaína, chegar em casa e tomar calmante. Quando eu saí do hospital eu tive uma síndrome do pânico e comecei a tomar os calmantes de novo, porque o vazio existia. Ele era um buraco oco dentro do meu peito. Era um buraco oco e nada o preenchia. Aí eu busquei. Eu disse: “Deus, eis-me aqui.” E eu me entreguei. Foram 27 anos da minha vida de escolhas erradas e uma única escolha certa.

“Vazio” e “angústia” são expressões de densa profundidade temporal, revelam tormentos fugidios, de difícil explicação para o narrador e que se estendem pela história do sujeito, muito além de um marco traumático. Segundo Coelho (2006COELHO, M. C. Juventude e sentimentos de vazio: idolatria e relações amorosas. In: ALMEIDA, M. I. M. de; EUGÊNIO, F. (org.). Culturas jovens: novas mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. p. 177-191., p. 177), o tema do vazio é discutido na literatura socioantropológica em articulação com a questão do narcisismo contemporâneo e a impossibilidade de construção de identificações sólidas em uma sociedade que desprivilegia o público e é marcada por uma efemeridade e instabilidade relacional. Nas narrativas de conversão, “vazio” e “angústia” são sentimentos que o converso tenta “preencher” ao longo da vida, em vão, justamente por não conseguir construir uma ilusão de identidade em torno de uma determinada circunstância da vida (dinheiro, carro, namoro, festas, “macumba”). A metáfora-corpo síntese é um “buraco oco dentro do peito”. É claro que estamos tratando de uma leitura a posteriori de uma trajetória, nitidamente marcada por um olhar religioso evangélico sobre o passado. Porém, “vazios” e “angústias” são nessas narrativas “palavras fantasmas” - segundo o modelo formulado por Das (2015)DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015. - porque vagam pelos testemunhos e nos permitem observar os sutis movimentos dos conversos por diversos limiares de suas vidas, os momentos que acreditam terem enfrentado instabilidades subjetivas. São expressões que apontam para uma corrosão do dia a dia por um estilo específico de sofrimento que não é nem catastrófico, nem sublime, tal como o sofrer mais disruptivo, categórico, instaurador de um “antes” e um “depois”, provocado em Urach após sua internação no hospital.

Visto neste artigo pela mesma lógica argumentativa adotada por Das (2015)DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015. para a “aflição”, “vazios” e “angústias” são sentimentos negativos que avançariam pelos tempos na vida de algumas pessoas. Eles se tornam paradoxais por serem, por um lado, assimilados em um contexto de normalidade, já que a pessoa nem sempre vivencia um momento considerado crítico e seu sofrer não é necessariamente elaborado nos termos do “traumático”. Ao mesmo tempo, não são plenamente absorvidos, deixando nas pessoas a sensação de que há algo de errado, mas não se sabe bem o que é. No contexto de um testemunho, “angústia” e “vazio” remetem diretamente a sensibilidades orientadas para a busca por uma solução divina dos tormentos, será Deus o responsável por “preencher” as sucessivas faltas de identificação ao longo da vida. Mas mesmo diante dessa “teologia do sofrimento”, verificamos pelas palavras religiosas da modelo uma “política econômica do cotidiano” (Das, 2015DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015., p. 25, tradução minha). Isso porque acompanhamos suas perdas momentâneas da capacidade de se engajar na vida bem como a maneira como seu sofrer vem sendo suportado pelos tempos.

As narrativas de Urach estão repletas de sentenças que avaliam o tempo passado/distante, geralmente o colocando como “cruel” ou “implacável”. As datas específicas reafirmam esse cálculo do tempo. “Durante seis anos” ela foi tudo o que hoje não gostaria de ter sido. São “tempos ruins”, “maléficos”. “No dia 3 de dezembro nasceu uma nova Andressa.” Tanto que a incursão de Urach a momentos da infância e da adolescência - seu passado distante - são descrições que sempre remetem à dor. No livro-testemunho Morri para viver (Urach, 2015URACH, A. Morri para viver: meu submundo de fama, drogas e prostituição. São Paulo: Planeta, 2015.), a modelo descreve a infância a partir dos seguintes relatos: das moléstias e assédios por ela sofridos e provocados por um avô de criação; da ausência do pai; da violência e impaciência da mãe, bem como de descoberta dos “prazeres do fumo”. Todas as memórias da infância são reduzidas, em dois capítulos do livro, a essas histórias de sofrimento. Não há outras lembranças consideradas mais positivas. O mesmo poderíamos afirmar sobre as descrições da adolescência, vista como uma fase “problemática”. O corpo e as descobertas típicas ganham destaque, sendo observadas a partir da ideia de uma “não aceitação da imagem” e das primeiras relações sexuais, descritas como perversas e absurdas. Além disso, os vícios são intensificados: maconha torna-se uma descoberta; a prostituição, uma possibilidade de recurso financeiro. Temos a intensificação narrativa da imagem de uma adolescente rebelde, inconsequente, preocupada com a aparência e muito “sexualizada”.

Assim, ouvir tais testemunhos de Urach e a redução de toda a sua trajetória a uma sequência aflitiva de sofrimentos só corrobora a perspectiva narrativo-performática que explicitei anteriormente. Porém, proponho aqui observar tais histórias como o solo onde irão se fincar as bases de sua argumentação e não algo que meramente serve a convencer seus ouvintes. Afinal, o que realmente importa para Urach quando ela testemunha? Diante dos sofreres, o que esse ato revela sobre sua agência pessoal, sobre seu “refazer” de seu mundo?

A reconfiguração ideal de vida, o caminho para o qual Urach dirigiu suas forças de autocriação, é aprender a se tornar uma “mulher de verdade”, isto é, em suas visões de mundo, estar enredada pela família, por seus afazeres domésticos, pelo cuidado do filho e do marido. Portanto, é preciso pensar as composições dos testemunhos como inscritas também em dinâmicas de gênero. As dores encenadas e vividas por Urach tematizam em suas tentativas de “refazer um mundo” a necessária imposição a si mesma de um modelo de feminilidade que segue as expectativas hegemônicas de gênero, particularmente aquelas propagadas pela moral sexual das religiões evangélicas. Trechos de testemunhos em igrejas e do livro indicam isso:

Saiu uma culpa das minhas costas. Hoje eu respeito as pessoas. Eu respeito o meu corpo. Eu aprendi a me valorizar. E o melhor de tudo, eu aprendi a ser mãe. Uma das coisas que eu mais me arrependo na minha vida é de nesses seis anos achar que o dinheiro compraria a felicidade do meu filho. Quantas e quantas noites eu deixei ele em casa para ir para balada, para ir para rave, para ter três overdoses. O quanto eu me arrependo disso. Mas Deus é tão maravilhoso e me deu essa segunda chance. E eu não vou desperdiçar ela por nada deste mundo. Este ano pela primeira vez eu fui ao colégio dele no dia das mães. Então, hoje não existe dinheiro nenhum no mundo que compre a minha paz e a minha vida transformada. Deus não abençoou só uma área. Deus abençoou todas as áreas da minha vida.6 6 Testemunho proferido na Igreja Universal em Macapá. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kNDQkiGFA6s&t=73s.

Agora, pouco a pouco, tenho descoberto novas riquezas. Passei a prezar instantes tão simples e, ao mesmo tempo, tão singulares da nossa rotina. Sinto alegria ao acordar de manhã e tomar café com meu filho e minha mãe. Adoro ficar na cama assistindo filmes e brincando com o meu garoto. Tenho vontade de passar horas jogando conversa fora com minhas amigas e meus familiares. Quero me cuidar, estar sempre bonita e elegante, mas estou feliz com o meu corpo. Sentir o vento bater no rosto e suspirar profundamente hoje me arrancam um sorriso. Como é bom viver! (Urach, 2015URACH, A. Morri para viver: meu submundo de fama, drogas e prostituição. São Paulo: Planeta, 2015., p. 230).

Segundo Kleinman (2006KLEINMAN, A. What really matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press, 2006., p. 22), arrependimentos e remorsos não são apenas sintomas de alívio para alguém que narra suas culpas, mas armas para encarar falhas morais ao se perceber em condições particulares de tensão entre aspirações éticas pessoais e expectativas de uma dada sociedade. Antes de serem vistos como puro reflexo de uma passividade, podemos perceber que tais sentimentos remetem também a escolhas individuais em prol de um tratamento existencial para suas responsabilidades morais. Nas narrativas de Urach, os arrependimentos tangenciam justamente as responsabilidades de gênero. Trata-se de “se dar ao respeito”, passar a “se valorizar” conforme uma ética socialmente legitimada como feminina. Os efeitos no passado da disfunção de seu dia a dia provocados por uma vida considerada “pervertida” e “na rua” são contrastados agora por um conjunto de histórias contadas a partir da casa, de suas dinâmicas mais corriqueiras como tomar café com o filho e assistir a filmes deitada na cama. Em outro texto (Bispo, 2018BISPO, R. Na corrente midiática da fé: comunicação de massa e dinâmicas contemporâneas do testemunho evangélico. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 24, n. 52, p. 249-277, 2018.), indiquei o quanto o espaço doméstico torna-se um lugar para se testemunhar sobre a conversão, já que Urach passou a fazer vídeos caseiros e disponibilizá-los nas redes sociais ensinando “meninas” a cozinhar, além de dicas de como se comportar socialmente sendo uma mulher evangélica. A exposição do lar remonta a esse ethos de compromisso com um ideal de feminilidade legitimado pelas moralidades evangélicas que Urach passa a negociar, indicando ao mesmo tempo que viver uma “vida moral”, nos termos de Kleinman (2006)KLEINMAN, A. What really matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press, 2006., é intensivamente difícil, visto que requer uma comprovação desse modelo de vida a todo instante por meio de imagens diárias da intimidade.

“E eu começo num processo de lapidação”

A atual pastora e missionária da Igreja Batista Renovada Viviane Brunieri, “ex-Ronaldinha”, tem 42 anos de idade. Nascida em Peruíbe, interior de São Paulo, mora há alguns anos com seus dois filhos em Nagoya, no Japão, atuando na condução de cultos para brasileiros e em “projetos sociais” de evangelização de moradores de rua. A vivência nesse país não é recente, visto que lá morou por vários anos, entre idas e vindas ao Brasil conforme seu envolvimento com o mundo artístico. Brunieri compôs a “baixa classe artística” televisiva durante a segunda metade dos anos 1990, época também do ápice como jogador de futebol de Ronaldo Fenômeno, com quem a modelo teve um rápido relacionamento e a quem o apelido artístico que escolheu faz alusão. Sua presença midiática sempre teve a tônica dos “trabalhos sensuais”, posando nua para a revista Playboy, além de compor com uma outra jovem um grupo musical chamado As Ronaldinhas. Paralelamente à execução velada de trabalhos como profissional do sexo ao longo da fama, Brunieri chegou a estrelar filmes pornográficos para uma grande produtora.

Sendo assim, seu testemunho em muito se assemelha ao de Urach quando constantemente ambas reafirmam em público um “passado de perdição” em oposição a um presente reconfigurado. As temporalidades apontam para uma drástica ruptura com o que se foi no passado, particularmente quando Brunieri aciona a categoria de “ex-puta” como forma de agregar determinado capital simbólico à sua conversão, uma “discriminação positiva” (Lopes, 2017LOPES, N. “Prostituição sagrada” e a prostituta como objeto preferencial de conversão dos “crentes”. Religião e Sociedade, v. 37, n. 1, p. 34-46, 2017., p. 35). No DVD Prostituta nunca mais, de 2013, porém, Brunieri é enfática ao afirmar que não houve uma conversão intempestiva, mas um “processo de lapidação” que teria se iniciado no ano de 2001 e finalizado, positivamente, em 2009. “Foram oito anos tentando, me esforçando em caminhar com Jesus, me envolvendo com o povo de Deus.” Ela aponta para inúmeros “momentos críticos” como indícios para o estopim de uma “busca constante” a fim de compreender melhor sobre Deus e “preencher um vazio” que nela existia, sem saber o porquê: a morte do pai e a observação de seu corpo no caixão; o consumo de drogas como cocaína, metanfetamina e a consequente internação por conta da dependência química.

Entretanto, ao longo dessa “lapidação” de oito anos, é possível notar que seus “vazios” não a impediam de se comportar como uma “prostituta”, figura-personagem de suas histórias entendida não apenas como uma mulher que trocou sexo por dinheiro, mas também como alguém que teve muitos parceiros fora do casamento ou não se relacionava por amor, “quando suas práticas sexuais podem facilmente deslizar para uma profissão semicriminalizada” (Lopes, 2017LOPES, N. “Prostituição sagrada” e a prostituta como objeto preferencial de conversão dos “crentes”. Religião e Sociedade, v. 37, n. 1, p. 34-46, 2017., p. 41). Se, na atualidade, a prostituição é narrada abertamente aos fiéis por meio do testemunho, outrora essa prática estava envolvida nos modos discursivos típicos dos segredos, que serviam como estratégias para Brunieri manter comportamentos contrários à moral de sua comunidade religiosa, isto é, combinar os contraditórios de “ser prostituta” com o de “frequentar a igreja”. Portanto, o cultivo do segredo permitiu à modelo equilibrar durante alguns anos instâncias da vida vistas como incompatíveis, “desde que sua face religiosa fique salvaguardada do perigo da exposição pública” (Natividade; Gomes, 2006NATIVIDADE, M.; GOMES, E. de C. Para além da família e da religião: segredo e exercício da sexualidade. Religião e Sociedade, v. 26, n. 2, p. 41-58, 2006., p. 52). Seus testemunhos, portanto, só são possíveis quando essa combinação de antagonismos não se fez mais necessária e as narrativas do segredo (íntimas, para poucos, reveladoras), cedem às narrativas normativas, públicas e gerais do ato de testemunhar.

Fala assim a jovem no DVD sobre o “momento crítico” do filme pornô.

Eu não tinha noção do que uma cena de um sexo explícito pode causar na alma de um ser humano. Então, eu costumo dizer que ali era sim a grande viagem… para a morte. Em menos de um mês, desembarcando [no Brasil, vinda do Japão] em março de 2008, em menos de um mês comecei a gravação. E na minha primeira cena eu não tive dúvidas de que o diabo tinha vencido. Quando eu vi toda aquela iluminação, estrutura, maquiadores, enfim, diretor, produtor, para gravar uma cena de sexo explícito, eu tive a certeza. Eu olhei para câmera e, pensando, falei: “Você venceu, Satanás.” Porque não tem nada melhor para o diabo do que pegar o anonimato, uma prostituta anônima, e transformar ela numa atriz pornô. Para ele é partida ganha. Mas, para a surpresa dele, em menos de um ano… As gravações começaram em abril de 2008. Em abril de 2009, para a surpresa dele… E eu costumo dizer, com propriedade e autoridade, que foi sim o filme pornô que me libertou da prostituição. Porque através do filme foi quando eu abri a porta do meu coração, deixei Jesus entrar e verdadeiramente me libertar. Porque enquanto não existia filme, existia um pecado oculto, existia uma prostituta que a cidade de Peruíbe não sabia, que alguns familiares também nem desconfiavam. Mas através do filme, quando eu fui para o fundo do poço… […] Falei: “Deus, eu sei que eu te conheço mais de ouvir falar, mas eu quero contigo andar, eu quero caminhar contigo, eu quero ser uma mulher íntegra! Eu não quero mais ser prostituta, Deus! Eu não quero me relacionar mais com homens, para pagar as minhas contas, para me dar aquilo que eu desejo, que a minha carne quer, que eu acho que é importante.” Hoje eu sei porque eu vivo isso. Eu sei que não é o carro importado que traz a minha felicidade. Eu sei que não é sair toda noite para jantar com os meus filhos, ir no shopping, que traz a minha felicidade. E ali eu clamei, pedi para o Senhor. Presta atenção você que está aí na sua casa, você que já faz alguns anos que se encontra nessa mesma situação, conheceu Jesus, foi batizado, mas ainda não se converteu. Porque conhecer Jesus é uma coisa importantíssima, mas se converter dos maus caminhos, amados, é algo extraordinário, é algo maravilhoso. Mas é algo que requer você se posicionar, requer posicionamento e renúncia. Não tem como. Não existe uma conversão, sem antes um posicionamento e uma renúncia. E ali eu volto para os braços do Pai. E verdadeiramente, amados, voltei para a igreja a qual eu tinha conhecido, tinham falado de Jesus para mim.

O “refazer de um mundo” de Brunieri é formulado aos poucos, com o passar do tempo. Poderíamos afirmar, conforme Duarte et al. (2006)DUARTE, L. F. D. et al. Família, reprodução e ethos religioso subjetivismo e naturalismo como valores estruturantes. In: DUARTE, L. F. D. et al. (org.). Família e religião. Rio de Janeiro: Contracapa, 2006. p. 15-50., que há uma tríade de atitudes que compõe o périplo do convertido quando está a testemunhar. Há a identificação não tão clara dos problemas e suas “angústias” (morte do pai, consumo de drogas, prostituição, filme pornô) que começam a ser reguladas através da participação nem sempre constante na igreja. Posteriormente, existe uma necessidade de manutenção dos novos princípios adquiridos por meio de uma reprodução, de um habitus (“abrir as portas do coração”, abandonar o consumismo, ter contato intenso com os filhos). Por fim, a partir das identificações dos problemas e da aquisição de hábitos, é necessária a transformação do “interno”, do “caráter”, aquilo que realmente importa na perspectiva dessas mulheres. O momento do testemunho é o ápice de publicização dessa mudança interna das subjetividades do convertido, quando ele tenta convencer a todos de que não houve só uma mudança de sua “aparência” e “comportamento”, mas de seu “eu mais íntimo”. É a isso que se refere Brunieri quando afirma que a conversão exige “um posicionamento e uma renúncia”.

O DVD é resultado dessa tentativa por parte da missionária de se “posicionar” depois de um longo período de “lapidação”. É quando ela brada a todos que aquilo que realmente importa depois de passar por uma série de sofrimentos é a busca por tornar-se a figura feminina exemplar que, tal como Urach, diz acalentar desde a tenra infância e da qual a prática da prostituição só a fez se afastar ainda mais. “Então, eu não via possibilidade nenhuma durante muito tempo de viver se não fosse daquela maneira. Mas eu tinha certeza daquilo que eu esperava: ser uma mulher digna, feliz, andar com integridade.” Coelho (2010COELHO, M. C. Três mulheres no nazismo: reflexões sobre as fontes do comportamento moral. Dilemas, v. 2, n. 5-6, p. 13-48, 2010., p. 28) afirma, analisando as trajetórias de três mulheres no nazismo, que esse tipo de exposição pública em torno de avaliações morais e questionamentos das razões para atitudes do passado revela não só uma possível sensação de culpa e identificação de responsabilidades, mas também o “esforço para encontrar respostas que possam trazer-lhe algum grau de apaziguamento interno”. E complementa: “Qual o trabalho que esses perdões, culpas e memórias realizam?” (Coelho, 2010COELHO, M. C. Três mulheres no nazismo: reflexões sobre as fontes do comportamento moral. Dilemas, v. 2, n. 5-6, p. 13-48, 2010., p. 42).

“Eles precisam de mim”

Valéria Valenssa, 46 de idade, foi a “rainha” do carnaval da Rede Globo por cerca de 15 anos. Desde o início da década de 1990, incorporava a personagem “Globeleza” e dançava seminua nos programas da emissora. Sua atuação artística sempre esteve ligada às temporalidades ritualísticas dessa festa popular, consolidando em nosso horizonte cultural por meio dessa associação entre samba e feminilidades o imaginário da figura histórica da “mulata”, transformada nas vinhetas estilizadas e futuristas da TV em “mulher desejável”, símbolo de uma sociedade (que se quer) mestiça (Corrêa, 1996CORRÊA, M. Sobre a invenção da mulata. Cadernos Pagu, n. 6-7, p. 35-50, 1996., p. 49).

Nas temporalidades testemunhais, Valenssa situa em meados de 2005 sua conversão religiosa, diretamente relacionada aos “sofrimentos” causados pela não renovação do contrato com a Globo para continuar a desempenhar sua tradicional função, visto que estaria “fora de forma” após duas gravidezes, além de não ser mais “novidade” no mercado de celebridades. Porém, cabe destacar que seu ímpeto por testemunhar é relativamente recente, quase dez anos depois do momento crítico da demissão. Essa distância temporal nos permite vislumbrar não só um modo de narrar menos intempestivo e melodramático como os descritos anteriormente, mas também seu périplo por distintas igrejas evangélicas como a Comunidade Internacional da Zona Sul (3 meses); a Iurd (que frequentou por 10 anos) e a Igreja Batista, sua atual “casa”.

E eu fui chamada na Globo para uma reunião e, naquela reunião ali, eles falaram simplesmente: “Valéria, hoje você não é mais! Nós vamos colocar uma outra no seu lugar.” E eu falei: “Mas não foi isso bem que eu imaginei.” […] Eu saí de lá muito triste, eu fui para a minha casa. Eu tive um privilégio muito grande de estar muito próxima dos meus filhos, eu nunca tive babá e ali eu cuidava, cuidei o tempo inteiro e cuido até hoje dos meus filhos. Fui para casa muito triste. […] Porque nós não estamos preparados para perder e naquele momento a Globo tirou o meu tapete. E quando eu fiquei em casa, desmarquei todos os meus compromissos, eu tinha poucas pessoas ao meu redor. Eu comecei a entrar numa tristeza profunda e durante seis meses eu tive uma depressão profunda. Depressão hoje nós sabemos que é o mal do século e sabemos também que a doença não atinge só o doente, atinge todas as pessoas que estão ao seu redor. Então, ali eu fiquei uma pessoa triste, eu chorava todos os dias, eu cobrava das pessoas que elas poderiam fazer alguma coisa por mim e elas não podiam fazer absolutamente nada. Naquele momento ali, eu estava no fundo do poço. O que era a minha alegria?! Eram os meus dois filhos. Porque sabemos que a depressão… A consequência da depressão é a morte, porque você não tem mais o prazer de viver, porque a depressão te rouba tudo. Eu, que era uma pessoa sonhadora, ali eu não sonhava mais nada. O que que era a minha alegria?! O José e o João. Jesus é tão lindo, né?! Porque ele já sabia. Eles precisavam de mim e eu precisava deles. E se não fossem meus filhos, eu morava no 15º andar, era muito mais fácil eu me jogar pela janela, porque nada estava bom para mim. Não estava bem com o meu casamento, profissional, na saúde, eu não estava bem em absolutamente nada. E, ali, já há seis meses dentro de casa, a única coisa que eu saía, quando eu saía de casa, eu ia para um parque com os meus filhos muito próximo de casa e ficava lá na parte da tarde e retornava para casa. Durante seis meses eu fiquei dentro de casa e ninguém percebeu que eu estava doente. Porque eu ficava ali no meu mundo, isolada e ninguém percebeu isso. Mas Deus percebeu!7 7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r_D-n3RowC8&t=368s.

Destaca Das (2015DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015., p. 17) que o adoecimento gera “incoerências” nas pessoas, isto é, mesmo que a experiência seja absorvida pelo dia a dia, mantém-se um senso de que as doenças vão além dos limites das categorias que estão disponíveis a elas para se expressar. Valenssa - mesmo consciente de sua “depressão”, do caráter compartilhado e social desta nos dias de hoje como “mal do século” - apresenta-se como sendo ameaçada por ela durante um longo tempo. As doenças podem ser inseridas nas rotinas, serem um “quase evento” (Das, 2015DAS, V. Affliction: health, disease, poverty. New York: Fordham University Press, 2015.), mas transformam-se em algo crítico, catastrófico em alguns momentos. O testemunho da artista revela suas nuances e movimentos em torno da convivência com a depressão.

Cabe realçar que Valenssa não constrói uma narrativa de ruptura e mudança drástica de vida após a conversão tal como fazem Urach e Brunieri. As possibilidades de continuidade com o que fez no passado dão segurança e status a Valenssa: não critica a nudez ou vê como “erótico” ou “pervertido” o trabalho outrora desempenhado. Olha para a “Globeleza” com um tom saudosista e orgulhoso, no modelo de um “sonho” que foi bem vivido e “bom enquanto durou”. Não há, em seus discursos atuais, sensações explícitas de arrependimento e remorso para com suas ações do passado, ela não “colhe o mal que plantou” provocado por suas ações, combinando-as de maneira harmoniosa com seu presente evangélico. Por sua vez, o passado rememorado por Urach e Brunieri é de “pecados” e repleto de erros individuais sobre os quais as narradoras precisam pedir perdão a todo instante, um rompimento com tal temporalidade torna-se imprescindível. Isso faz serem mais intensas as manifestações públicas do sofrimento. Já Valenssa - dez anos “ao lado de Deus” - enuncia suas dores como algo que lhe aconteceu, narradora vítima de um mal que a acometeu repentinamente, descrevendo essa história da maneira mais aproximável a narrativa do trauma: seus infortúnios foram provocados pelo “puxão de tapete” da Globo. Sem a demissão abrupta, talvez estivesse ainda vivendo seu “mundo de sonhos”, nos permite supor. O contexto da depressão como um elemento negativo a ser superado se basta na narrativa de Valenssa. Já a culpabilidade acompanha as histórias das outras dançarinas trazidas à baila.

Além do mais, seu casamento de mais de 25 anos com Hans Donner - diretor artístico da Globo e responsável pela “criação” da dançarina - e seus dois filhos frutos dessa relação servem a todo instante nos testemunhos como o alicerce discursivo para Valenssa narrar sobre “o que realmente importa”. As consequências de seus sofrimentos profissionais geraram um isolamento familiar. O combate do mal tem como propósito “voltar” a se enredar na relacionalidade garantida pela trama do parentesco. Ela busca não se perder em sentimentos que desvirtuem seu propósito máximo de vida que é manter-se sendo uma boa mãe e esposa: “Eu nunca tive babá.” Não se trata, pois, de almejar um modelo ideal de feminilidade nunca antes atingido, ser a mãe-esposa que nunca foi. Valenssa revela que desejava “voltar” aos patamares de felicidade de outrora, abalado pelo “trauma” causado pelo fim de sua carreira de dançarina. Seu casamento bem-sucedido e uma vida profissional de sucesso não fazem dela uma pessoa assombrada pelos fantasmas de conseguir algum dia ser alguém que nunca foi. Seu “refazer do mundo” segue o propósito de contornar os sofrimentos a fim de retomar as rédeas de uma vida que foi considerada em algum momento perfeita. Tanto é que a afirmação de satisfação plena na atualidade por parte de Valenssa é formulada em torno da tríade de papéis “mãe, esposa e empresária” que voltou a executar a contento. Poderíamos acrescentar, é claro, que ser “evangélica”/“religiosa” seria uma outra dessas possíveis identificações que a satisfaz no presente, “preenchendo” seus “vazios” de outrora.

Eu voltei a sonhar, eu voltei a viver. Hoje os meus filhos já são quase do meu tamanho. Hoje eu trabalho com o meu marido, eu sou sócia de três empresas, fora da Globo. Eu sou responsável pelas agendas dele, das palestras. Estamos sempre juntos, compartilhando. Ele, a história dele; e eu, a minha história. […] Nosso maior mandamento é quando a gente enxerga o próximo, a gente ama o nosso próximo, eu acho que essa é a maior grandeza que o ser humano tem! Eu trabalho com meu marido, eu faço a agenda dele, eu sou mãe, eu sou esposa, eu sou empresária. Eu estou voltando a fazer algumas coisas que eu sonhei fazer.

Conclusões: “O problema de hoje será o seu testemunho de amanhã”

Ao longo deste artigo, procurei indagar, com base em Kleinman (2006KLEINMAN, A. What really matters: living a moral life amidst uncertainty and danger. Oxford: Oxford University Press, 2006., p. 5), o seguinte: quando o nível de incertezas é alto por demais, que tipo de decisões acabamos por tomar a fim de contornar as agruras e pensar que temos o destino de nossas vidas sob controle? Busquei demonstrar o quanto o processo de conversão pode ser, portanto, uma busca por aquilo que “realmente importa”. Quando passamos a adentrar as temporalidades dos testemunhos das interlocutoras dançarinas desta pesquisa compreendemos melhor a conversão por uma perspectiva do cotidiano, tentando analisar os sofrimentos nos testemunhos para além de seus diagnósticos de sociedade ou suas abordagens narrativo-performáticas. Observamos o sofrer pelas práticas mais banais em prol do bem-viver, do lidar com as tormentas diárias que nos acomete em momentos como a injustiça e a discriminação, os trabalhos finalizados ou demissões, a falta de dinheiro, o abalo do status social, as tensões sexuais, os acidentes, as doenças crônicas, os fracassos artísticos, enfim, situações e calamidades banais que destroem nosso senso de que estamos controlando o próprio destino.

De acordo ainda com Das (2007DAS, V. Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press, 2007., p. 55), por mais doloroso que possa ser falar sobre o que se sofreu publicamente - e a dor se faz nas falas de Urach, Brunieri e Valenssa constantemente em lágrimas e gestos contundentes - chegar a esse ponto de pôr-se a testemunhar é demonstrar que negociar com esse passado já é algo viável, encontrando-se nos contornos dessas histórias uma “forma humana possível de vida”. As expressões capazes de situar no passado as temporalidades de uma dor que vimos ao longo do artigo permitem inscrevê-las na atualidade, indicando o quanto o discurso testemunhal é reflexo da capacidade da narradora em buscar uma agência pessoal frente a seus sofrimentos corriqueiros. Nesse sentido, a profusão de palavras, as possibilidades do falar pelo testemunho, é oposto ao silêncio e ao engajamento no mundo pelo luto e o não narrar (Bispo, 2016aBISPO, R. Rainhas do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2016a., 2016bBISPO, R. Tempos e silêncios em narrativas: etnografia da solidão e do envelhecimento nas margens do dizível. Etnográfica, v. 20, n. 2, p. 251-274, 2016b.; Das, 2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011.). Mesmo que o termo testemunho traga em si as lógicas de poder das religiosidades cristãs ocidentais - e que esse falar público ressoe as estratégias religiosas de conquista de novos fiéis - sua pertinência não está apenas em “atestar a fé diante do corpo mutilado”, mas, também, em deixar mais às claras a “criatividade da vida” (Das, 2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, n. 37, p. 9-41, 2011., p. 12). Vimos aqui a importância de se proferir palavras por meio de narrativas na reconstrução subjetiva de artistas que passaram por situações de vida críticas, observando como mulheres reocupam o mundo pela narração pública de seus sofrimentos.

À guisa de conclusão, cabe aqui uma rápida reflexão em torno desses constantes desejos por elas proferidos de adequar-se às expectativas em torno de ideais hegemônicos de feminilidade propagados por suas igrejas a fim de recuperarem seus mundos e o que “realmente importa”. Tenho buscado por meio desta pesquisa outras inspirações analíticas que não aquelas que visam reduzir tais propostas de vida a um mero reflexo de uma “onda conservadora” de “subjugação de mulheres” estimulada na contemporaneidade pelo crescimento do (neo)pentecostalismo no Brasil ou que pretendem procurar ou resgatar nessas trajetórias o que há de possivelmente emancipatório ou “feminista” nelas. A partir de Mahmood (2006)MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006., tenho tentado compreender os “projetos éticos” que movimentam tais expectativas idealizadas de gênero, visto que os termos binários da “resistência” e da “subordinação” são insuficientes para entendermos as motivações, os desejos e os objetivos de pessoas em situações-limite de vida e em constante sofrimento. Os matizes emocionais dos “vazios” e “angústias” mostrados anteriormente são incapazes de serem captados em suas densidades subjetivas, em seus impactos na vida de quem os vivencia, quando nos limitamos a interpretar o fenômeno através dessa terminologia clássica da resistência, que é também em muitos casos politicamente prescritiva, embasada numa noção de pessoa de indivíduo autônomo e consciente de si que perpassa o ideário da cultura ocidental moderna.

Seguindo Mahmood (2006MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006., p. 133, grifo da autora), a partir de uma outra percepção das relações de poder e formação das subjetividades na contemporaneidade é possível conceituar a noção de agência não só como um sinônimo de resistência a relações de dominação - visto que a autora não nega que esse é um modelo analítico pertinente para diversas situações - mas, também, como uma “capacidade para ação criada e propiciada por relações de subordinação específicas”. Trata-se de uma visão mais situacional e interativa da noção de agência em contextos de intensas desigualdades, em que se busca examinar as formas eminentemente assumidas pelas normatividades em seus desdobramentos nas “topografias do self” de determinados sujeitos. Nesse sentido, quando observamos com maior atenção as dinâmicas do sofrimento através das narrativas testemunhais de Urach, Brunieri e Valenssa, verificamos que as normas não são apenas consolidadas e/ou subvertidas por elas, “mas também performadas, habitadas e experienciadas de várias maneiras” (Mahmood, 2006MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006., p. 136).

Nesse “habitar as normas” das artistas evangélicas, capaz de permitir a elas alguma modalidade de agência frente ao seu mundo, analisamos também as formas particulares de investimentos sociais garantidas a elas pela experiência emocional do sofrer. Vimos ao longo do artigo mulheres sofrendo por inúmeras pressões geradas por moralidades que as obrigavam a se conformarem a certas exigências ideais do que é ser uma mulher, mãe e esposa. A princípio, isso só confirmaria ser o sofrimento uma modalidade de existência no mundo tida recorrentemente como a antítese da agência. Porém, seguindo ainda Mahmood (2006MAHMOOD, S. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. 10, n. 1, p. 121-158, 2006., p. 146), a grande virtude dessas artistas - e certamente de muitas outras mulheres que se põem a testemunhar nos púlpitos das igrejas, sejam elas anônimas ou famosas - não é apenas ser conhecida e louvada pela capacidade de se erguer sobre o sofrimento e viver uma vida de acordo com os predicados esperados, mas se constitui também por seus modos de atuação, pelas maneiras através das quais viveram esse sofrimento, como foram capazes de recriar suas vidas e ser delas suas agenciadoras mesmo seguindo expectativas morais socialmente desejáveis.

Pode, então, o sofrimento, frente a essas exigências normativas, ser compreendido para além de um mero reflexo nas subjetividades dessas mulheres das desigualdades sociais que as obrigam a viver, ou pelo menos tentar, conforme um ideal de feminilidade, ou mais precisamente, segundo um propósito último de vida que seria ser uma mãe e esposa exemplar? A partir das análises dos testemunhos aqui proferidos, aposto que sim. As narrativas do sofrimento são as “provas” que elas mesmas dão a quem quiser ouvi-las das virtudes adquiridas por meio das ações por elas próprias elaboradas após passarem por inúmeros “problemas” pessoais. É através desse “habitar as normas” pela via do sofrimento que foi possível a inúmeras artistas se porem novamente ativas em suas vidas, agirem no cotidiano, encontrando nas experiências religiosas um conjunto de ações necessárias a fim de refazerem elas mesmas seus mundos até então devastados por “dores”, “vazios” e “angústias”.

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    A página na internet que apresenta o evento é: http://charosa.blogspot.com.br/.
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    Este artigo é resultado de uma pesquisa por mim coordenada e intitulada “Testemunhos e transformações: narrativas, emoções e moralidades femininas na conversão religiosa de artistas populares”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa (Propp) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Agradeço imensamente ao empenho e carinho da equipe de iniciação científica envolvida no segundo ano do projeto (2018) e que muito auxiliou para a redação final deste texto: Bruna Furtado (VIC/UFJF), Caroline Mendonça, Eric Fraga (IC/Fapemig), Helena Carvalho (IC/Fapemig), Luiza Vieira Godinho (VIC/UFJF), Nathália Prados (BIC/UFJF), Thaís Melo (BIC/UFJF), Vanessa Fávero (VIC/UFJF), Victoria Junqueira (BIC/UFJF).
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    Este artigo trata exclusivamente da conversão de ex-modelos e dançarinas, não só pelo meu interesse nessas carreiras artísticas em específico (Bispo, 2015BISPO, R. Vivendo do rebolado: feminilidades, corpos e erotismos no show business televisivo. Mana, v. 21, n. 2, p. 237-266, 2015., 2016aBISPO, R. Rainhas do rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2016a., 2016bBISPO, R. Tempos e silêncios em narrativas: etnografia da solidão e do envelhecimento nas margens do dizível. Etnográfica, v. 20, n. 2, p. 251-274, 2016b.), mas pelas questões morais que elas suscitam por conta de suas proximidades com o mercado erótico. Entretanto, a pesquisa da qual esse material empírico faz parte tem se dedicado a outros segmentos das artes, como cantoras, atrizes, apresentadoras, etc.
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    Testemunho proferido na Igreja Universal em Macapá. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kNDQkiGFA6s&t=73s.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Maio 2018
  • Aceito
    05 Fev 2019
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